terça-feira, 14 de janeiro de 2014

AMOR

Ela vivia ali, longe do seu mundo, na cidade da música, tornada leitora depois do tempo de acreditar nos livros. 
Mulher madura, de vida vazia. Acontece.

Partira do seu país na procura de vida própria, com filhos crescidos, com casamento desfeito. Ali, no frio que a língua estranha tornava cortante, tentava cumprir quotidianos de ser. Não se procurava, como era comum ouvir colegas dizerem, porque há muito se encontrara. Procurava, apenas, um sentido, uma existência para além do tão francês e frequente metro-boulot-dodo
Ele vivia no ar, aos comandos de aviões sempre cheios, de aeroporto em aeroporto, aquecendo as noites em abraços diferentes e, muitas vezes, sem rosto. Voava, e nem via o mundo de cima, nem ao longe, porque criara o seu próprio espaço, feito das suas certezas, que manipulava com a eficácia que imprimia aos voos que, há mais de vinte anos, o mantinham no ar.
Os dois enganavam a solidão com a virtualidade que a internet permite e, entre um delete e um like, cruzaram-se. A conversa fluiu, os gracejos fizeram texto e, depressa demais, o encontro aconteceu. Ela arranjou-se com cuidado, as cores escuras favorecem mulheres maduras, e encolheu-se no canto do autocarro que a levava ao aeroporto de Viena. Semicerrou os olhos no percurso, pensou nos filhos, lá longe, e sorriu para dentro ao desafio que abraçava. Uma loucura, talvez. Caminhou apressada no enorme e ruidoso espaço, Terminal 1 era o seu destino. A escada rolante, de vários patamares, parecia cúmplice no atrasar do momento. Ao cimo, ele. Fardado ainda, olhos sorrindo, boca firme e fechada. Recebeu-a num abraço inesperado, e ela aninhou-se no peito largo. 
O carro alugado levou-os a Salzburg, e o hotel Stein protegeu-os da noite gelada. 

Um vinho quente fez correr a conversa, as palavras descomprometidas faziam sentido por, exactamente, não terem sentido nenhum!
No domingo, despediram-se no aeroporto. Até um dia, disse ele. Adeus, disse ela.
No pequeno apartamento, vendo lá em baixo Mozart brilhando, resistindo às lágrimas que caíam, ela ligou o computador e bloqueou o contacto. Assim, apenas.

3 comentários:

  1. Vidas cada vez mais reais...

    Lena

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  2. Mais um texto que devia fazer parte do seu livro... ESCREVA!!
    António

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  3. Mais um bonito texto a confirmar que a vida não é fácil! Muito bem escrito! Parabéns!

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