segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Vulgar

Todos os domingos, pela manhã, faziam aquele percurso, íngreme, e sentavam-se, ora envoltos na samarra grossa, ora abanando-se com o leque espanhol, vendo o mundo de cima. Um bocadinho de mundo, do seu mundo. A conversa começava sempre com um silêncio longo, para recuperar o fôlego, para arrumar os sentires, para eliminar as repetições, para selecionar o tema, para se sentirem vivos, ali, ainda. Se lhes perguntassem há quantos anos repetiam a mesma subida, nenhum dos dois saberia dizer. Nem lhes interessava saber. Sabiam que fora um dia, depois de vidas distintas, de passados cumpridos em lugares diferentes, que se tinham encontrado e unido. Tinham, os dois, a vida, o resto dela, livre para cumprir a gosto, ou a possível?, e, fazendo-se surdos à crítica colectiva, virando as costas à má-língua abundante, tinham acordado, uma manhã, abraçados e unidos. Desde então, não mais se tinham largado e, sentiam-no, eram um só desde sempre. Pelo menos, desde que o sempre tinha sentido. Aquele banco, aquele lugar, era o seu ponto de oração, o seu lugar de fé nos possíveis. E subiam sempre, deixando o carro longe, a velha calçada que a fazia torcer os pés e apoiar-se nele.
Outra vez ali estavam. Ela encostada a ele, calados, vendo lá em baixo a vida a acordar. Era muito cedo, apenas viam as costas das águias, o voo dançado das folhas e algum fumegar nas chaminés distantes.
A conversa surgiu então, agora feita de palavras quentes, murmuradas quase. Desfolharam a semana, as diferentes profissões, as preocupações comuns, a crise crescente e assustadora. Era bom estarem de acordo muitas vezes, como era bom discordarem muitas vezes também. Ela, sempre ela e o romantismo exagerado, beijou-o ternamente murmurando - "desculpa a vulgaridade, perdoa a banalidade, não te rias da saloiice, mas eu amo-te mesmo!Como dizer-te outra coisa, se o que eu quero mesmo dizer-te é que te amo?". Ele sorriu num beijo fundo que, ela sentia-o, era o aceitar cúmplice da declaração vulgar. Mas tão verdadeira!

3 comentários:

  1. Cada vez menos vemos os bancos "ouvirem" essas expressões tão ternas e comoventes. "Ridículas", diria o Pessoa, ternurentas, afectuosas, queridas e cúmplices, direi eu.
    Cumprimentos, desta vez com toda a ternura que sinto pelo que escreve.

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  2. Uma bonita história de amor com final feliz.Gostei.
    Boa semana.

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  3. Que bom ter um banco cúmplice...a quem a gente possa falar de sentimentos verdadeiros , e vulgares,e de banalidades, e de saloiices...E de fazer declarações de amor...,e ele aceitar a sorrir de um beijo fundo...!!!

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