quinta-feira, 20 de junho de 2013

Dúvidas

A rodar pôs o CD de Sinatra, I did it my way, sempre boa companhia, deixando a alma valsar, solta, enquanto o corpo se ocupava de papéis. Grelhas de classificação dos alunos, números, o excel a exigir rigor e ela, hesitante, sem saber qual o número a atribuir aos olhos brilhantes de saber, à vontade de aprender, ao prazer de descobrir poesia, ao entusiasmo em realizar aprendizagens activas... Sem saber, também, como classificar o desinteresse, as faltas de educação repetidas, o desleixo e os comportamentos absurdos.
Os quadradinhos ali estavam, chamados células, aguardando a sua decisão arredondada às décimas. Lembrava-se de ter lido há tempos, talvez na Madrugada Suja de Sousa Tavares, que em caso de dúvida se deve decidir a favor do réu. Mas os seus alunos não eram réus. Naqueles seres eléctricos, conversadores, capazes de a tirarem do sério, moravam pessoas a precisar de crescer com sucesso. Pessoas que, desejava ela, fossem capazes de criar um mundo novo e muito melhor do que o seu. A grelha excel ficava curta para o que ela considerava dever avaliar. E, no entanto, concordava com a necessidade de impôr objectividade e rigor à avaliação. O CD continuava girando, you must remember this..., e ela tentava trancar a memória, proibir as recordações de tomar conta de si. Tão complicada a vida, tão difícil coordenar sentires e pensares, memórias e futuros. Olhou a rua. Se lhe pedissem que avaliasse a vista do seu quintal, como faria? Sorriu ao absurdo. Há realidades que não se avaliam. Há mundo que, como dizia Alberto Caeiro, existe só para ser realidade. Uma flor é só uma flor.
Ou não?

3 comentários:

  1. Não páras de me surpreender! Para quando o romance?

    Fernando

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  2. Eu acho que a vida não é complicada. As pessoas é que a complicam! Lembro-me sempre como a setôra descomplicava o Saramago e o Pessoa.

    João

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  3. É um texto lindo, carregado de verdade.

    Ana

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