domingo, 18 de novembro de 2018

CINZA

Com muita calma, ainda de camisa de dormir e com os pés gelados, ela fez o lume. Primeiro, com cautela, limpou os restos de cinza. Ah, se pudesse fazer o mesmo com os seus sentires, varrer os sentires defeitos, as cinzas de muitas desilusões resultantes de grandes fogos, ficaria mais aliviada... Depois, aproveitando as brasas que restavam, colocou a lenha. Primeiro um tronco grande, forte, para suportar o fogo, depois os mais fracos que haviam de arder primeiro. 
Nunca conseguira fazer igual, na vida. O tronco mais forte, transformara-se, excessivamente depressa, em cinza, e os mais frageis, talvez mais insignificantes, tinham também desaparecido no fogo do tempo. 
Com o aspirador sorveu toda a cinza em volta. Estava limpa e pronta,  a lareira. Ela, não. 
Sentia cinza acumulada na alma, no corpo também, e a vontade de se auto-aspirar era muita. 
Que bom seria conseguir eliminar resíduos, pós de coisa nenhuma. Sim, tanta coisa nenhuma  a fingir grande existência na sua via. Fez uma festa  ao cão, esse indiferente a cinzas e a pernas geladas, e enfiou-se na banheira  a transbordar de espuma. Tão pouco ecológico, e tão confortável... 
Lá, na sala, ouvia o lume a crepitar, as brasas tinham pegado. E na vida? Iria ela a tempo de fazer pegar o fogo da vontade de existir?

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